Trezentos e cinquenta anos de atraso?
Fernanda Souza, Hanna Vasconcelos, Marina Reis Michel Santos e Taís Moreira
Por meio desse texto ensaístico,
buscamos analisar dentro do filme Que
horas ela volta?, lançado em 2015
por direção de Anna Muylaert as formas escravagistas ainda existentes no Brasil no século XXI. O filme mostra de uma forma
não muito explícita a situação que ainda hoje as domésticas vivem, se dedicando
ao lar de seus patrões para manter limpo e organizado como eles desejam, tendo
como benefício apenas um salário para sobreviver e um quartinho no fundo da
casa para dormir.
No processo de análise do filme
chegamos a comparar a situação com o texto da Lélia Gonzáles: Racismo e sexismo na cultura brasileira.
Destacando as mudanças do tempo e a forma que tais atos são exercidos apenas
camuflados de um modo aceitável pela população, não deixando de existir no
núcleo social, observando uma nítida comparação com o termo casa grande e
senzala, da forma em que a burguesia se estabelece com os “seus” empregados.
Durante o filme podemos ver uma
nordestina tendo como única saída na grande capital paulista o trabalho de
doméstica em uma casa de família de classe média alta. Trabalho esse que ela se
orgulha em praticar e cuidar do filho dos patrões sem questionamento crítico
aceitando tudo o que lhe é imposto, contudo ocorre uma mudança em seu
comportamento e pensamento com a chegada da sua filha, que questiona toda essa
estrutura social que a mãe vive.
Que horas ela volta? nos faz
refletir e criticar a sociedade em que vivemos. Porque em tempos tão atuais ainda vemos a marca da escravidão encravada
no seio brasileiro? Ao mesmo tempo estampada e vendada para sua população.
Consequências do colonialismo ainda existem depois de tanto tempo de luta da
minoria, ainda é a burguesia e o branco que exercem o poder.
Um Brasil ainda manchado pela escravidão
Acontece que a mucama “permitida”,
a empregada doméstica, só faz cutucar a culpabilidade branca porque ela
continua sendo a mucama com todas as letras. Por isso ela é violenta e
concretamente reprimida. Os exemplos não faltam nesse sentido; se a
gente
articular divisão racial e sexual de trabalho fica até simples. Por que será
que ela só desempenha atividades que não implicam em “lidar com o público”? Ou
seja, em atividades onde não pode ser vista? Por que os anúncios de emprego
falam tanto em “boa aparência”? Por que será que, nas casas das madames, ela só
pode ser cozinheira, arrumadeira ou faxineira e raramente copeira? Por que é “natural”
que ela seja a servente nas escolas, supermercados, hospitais, etc e tal?
(GONZALES, 1984, pg. 00).
O Brasil que Ana Muylaert
apresenta em seu filme é o país das atualizações contemporâneas das violências
históricas, um país cujas subjetividades individuais estão atreladas às
construções que 350 anos de escravidão institucionalizada, legalizada, deixaram
e inevitavelmente passaram de mães e pais para filhos e filhas. Heranças que
instauram lugares de fala e privilégios, lugares invisíveis para alguns, muito por
conta da carga normativa que estes lugares carregam e muito por conta da
difusão de uma falsa ideia de democracia racial que foi construída e defendida
dentro da academia e da cultura brasileira. O famoso mito da democracia racial.
Que horas ela volta? conta a
história de Val, mulher pernambucana que vai
trabalhar como empregada doméstica numa casa de uma família classe média
alta na cidade de São Paulo e manda boa parte de seus ganhos para que uma
comadre crie sua filha em sua cidade natal.
Val é uma mulher parda e
nordestina que vive na dependência de empregada da casa de seus patrões,
totalmente envolvida e dedicada aos assuntos e questões dessa família que não é
dela e que não a reconhece como membro, apesar de ser tratada com cordialidade
e por vezes com afeto.
Podemos fazer uma comparação no
filme Que horas ela volta? com a
citação do Michel Foucault: “O poder disciplinar não coage em sentido direto,
mas atinge seus objetivos através da imposição de uma conformidade que deve ser
atingida. Em suma, ele normaliza, molda os indivíduos na direção de uma norma
particular, uma norma sendo o padrão de certo tipo” (1984). Há uma nítida
retratação da imposição do rico sobre o pobre. Tendo o rico, como privilégio, o
espaço largo (a casa grande e espaçosa) e o pobre, o mínimo e necessário para
viver (o quartinho de Val). Podemos ver o espaço designado ao quartinho da
empregada não só apenas ao meio físico, mas, também ao espaço como ambiente
psicológico imposto pelo patrão ao empregado. A Val se vê em uma família que
diz aceitá-la como membro dela, porém, com tantas regras exercidas que o seu
espaço está sendo limitado do quartinho para a cozinha, limitando sua liberdade
dentro da casa, pois as regras são formas de disciplinar o empregado e de
colocá-lo em seu “lugar”. Esse espaço é questionado com a chegada da Jéssica ao
indagar “que regras são essas? Onde você aprendeu? Eles te deram um livro?”.
A
arquitetura da casa, muito grande e espaçosa em relação ao quarto apertado de
Val, ou ainda à cozinha que é seu principal espaço de domínio dentro da casa,
traz um tom análogo ao escravismo do Brasil colonial, que trazia a dicotomia
entre casa grande e senzala como territórios de senhores brancos e brancas e
serventes negras e negros.
Dentro do filme, em primeiro momento,
não vemos a sala de jantar. Esse lugar, símbolo de comunhão familiar não
pertence à Val. A diretora a enquadra, portanto, sempre distanciada desse
ambiente pelo corredor, confinado à cozinha. Val Durante muitos momentos é
tratada como um ser invisível, tanto quando passa servindo salgadinhos na festa
de aniversário de Bárbara, a patroa, como também quando Bárbara entra e sai da
cozinha como se Val não estivesse lá. Ou ainda na fotografia que Zé Carlos
apresenta a Jessica como “a foto de Val” na qual ela aparece no fundo da foto,
com a família de patrões em primeiro plano e ela no fundo de uniforme, em
desfoque. Os espaços que pertencem à Val são aqueles nos quais ela exerce seu
serviço: a cozinha, o quintal, os quartos enquanto estão vazios para limpeza.
Entretanto, a função de servente doméstica não é a única realizada por Val
dentro da família.
Se assim não é, a gente pergunta:
que é que amamenta, que dá banho, que limpa cocô, que põe prá dormir, que
acorda de noite prá cuidar, que ensina a falar, que conta história e por aí
afora? É a mãe, não é? Pois então. Ela é a mãe nesse barato doido da cultura
brasileira. Enquanto mucama, é a mulher; então “bá”, é a mãe. A branca, a
chamada legítima esposa, é justamente a outra que, por impossível que pareça,
só serve prá parir os filhos do senhor. Não exerce a função materna. Esta é
efetuada pela negra. Por isso a “mãe preta” é a mãe. E quando a gente fala em
função materna, a gente tá dizendo que a mãe preta, ao exercê-la, passou todos
os valores que lhe diziam respeito prá criança brasileira. (GONZALES, 1984. pg.
00).
A herança escravista brasileira
também deixou marcas na forma como as famílias estabelecem suas relações. A
história de Val é marcada pela distância de sua família real, criando um filho
que não é seu com carinho e dedicação que não consegue transmitir a sua filha.
Fabinho, o filho dos patrões, se encontra no centro de uma disputa entre os
valores normativos da cultura brasileira, que colocam Val no lugar de mãe
preta, mãe de leite para o menino, enquanto sua própria filha é criada
distante, sem o carinho e presença da mãe. A partir da chegada de Jessica, ela
também é tensionada a estar no lugar de mucama, servente, de “ajudar sua mãe no
serviço”, tratada como uma cidadã de segunda classe, com fronteiras bem
estabelecidas dentro do espaço e convívio doméstico, lugares e comportamentos
intransponíveis. Mas ela não aceita esse lugar.
Jéssica é a personagem que dentro
do filme provoca a tensão em relação à norma de fronteiras e comportamentos que
são esperados da classe baixa, da família servente.
Jessica é uma estudante dedicada,
uma mulher intelectual que impressiona com sua eloquência, e por conta da sua
forma de se impor enquanto pessoa, enquanto alguém que não é funcionária da
família de ricos, ela acaba sendo colocada num lugar hiper sexualizado na visão
dos homens da família, que estão sempre a rondando e impondo domínio sobre seu
corpo. Isso é transparente na encenação proposta pelo filme na cena do primeiro
contato entre a família e Jessica, ou ainda nas interações com Zé Carlos,
marido de Bárbara, no passeio na cidade, quando ele comete assédio e faz uma
investida sexual, e com Fabinho quando ele a empurra na piscina, mesmo depois
de ela ter deixado exposto que não entraria.
A vinda de Jéssica promove uma
mudança não apenas na dinâmica de tensionamento de hierarquias dentro da casa
da família rica, como também na encenação e decupagem do filme. A partir do
momento que ela aparece na casa, a câmera passa a invadir os espaços
inacessíveis da família branca, tanto a sala de jantar, quanto os dormitórios,
a piscina. Jéssica força a câmera a acompanhar essa transposição de fronteiras
à medida que ela não aceita a normatização do espaço imposta. Val vai de
encontro a todo o questionamento da filha, elas brigam e a dinâmica de sua
delicada e distante relação se vê tensionada, até o momento que Jessica prova
para sua mãe, através de sua aprovação no vestibular, que é possível ocupar
outro lugar nessa dinâmica social normativa.
Quando Jessica passa na primeira
fase do vestibular de arquitetura da USP e Fabinho não passa por dois pontos de
diferença, fazendo com que ele procure conforto no colo de Val e não da mãe,
ocasiona o fator motivador da exposição entre o conflito do lugar de mãe de
Bárbara e Val. A medida que Fabinho nega o carinho de sua mãe biológica e acata
o amor de sua mãe de criação, há também a demonstração de desaprovação e
vergonha de Bárbara a partir da aprovação da filha da empregada e desaprovação
de seu filho. O desfecho do filme reitera ainda que mesmo assim, as portas se
abrem mais facilmente a Fabinho, que em seu lugar de homem branco e herdeiro
não tem necessidade de se esforçar para conseguir oportunidades, e enquanto
Fabinho vai para Austrália, Jessica ainda estuda para a segunda fase do
vestibular e seu destino permanece incerto.
Vemos então uma Val transformada
pela mudança de perspectiva. Uma Val que entende que o que sua filha reivindica
não é mais do que o direito de ser vista como alguém que não é inferior por
conta de sua classe social, e sua história pode ser diferente do lugar que a
cultura reservou aos herdeiros do trabalho escravo, aos que não herdaram
o dinheiro acumulado por esse
trabalho, mas as estratégias de resistência e a sapiência de crescer nas
rachaduras.
Conclusão
Ao fim, Val não é a personagem
invisível que se esconde ao lado da porta, que mendiga atenção da patroa ou
ainda reivindica, através da relação com Fabinho, o lugar de família entre seus
patrões. Val se transforma na mãe orgulhosa, que invade a piscina, atravessa a
fronteira invisível e apoia sua filha, que se demite do ambiente tóxico de
trabalho e aluga seu próprio lugar, luta por sua família sem abrir mão de estar
perto, de sua subjetividade e desejos.
As estruturas sociais com as
quais Val estava acostumada, entram em colapso e se rompem a partir da chegada
de Jéssica que não permite se encaixar nelas. O filme percorre esse processo de
quebra de barreiras invisíveis, herança do colonialismo e época escravagista no
Brasil.
Referências Audiovisuais
Que horas ela volta? MUYLAERT,
Anna. Brasil: 2015. 114 min.
Referências Bibliográficas
GONZALES, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura
Brasileira. Revista Ciências Sociais
Hoje .223-244, jan. 1984.
FOCAULT,
Michel. Teoria da Sociedade Disciplinar.
1984
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